04/10/2011

ONDE ESTÃO OS MEUS ÓCULOS?!


Silêncio.

O meu respirar. O sabor da terra fria na boca, misturada com qualquer coisa quente. Levo a mão à cara - não tenho os óculos. Onde é que estão os meus óculos.

É sangue. Só pode ser. Passo com a língua nos dentes - uma, duas, as vezes que são precisas até me convencer que não parti nenhum dente. Ao menos isso. E os meus óculos?

Ponho-me de gatas. Abro os olhos. Caí do cavalo. Olho em redor, muito rapidamente, não está mais ninguém no chão. Nem o cavalo. Lembro-me que, mal caí, a minha preocupação foi proteger-me. E se ele caísse por cima de mim. Os meus óculos - onde é que estão os meus óculos?

Um dos putos vem a correr na minha direcção, eu estou a apalpar o chão, à procura dos óculos. Oiço alguém a chamar pelo meu nome, no meio da confusão de pensamentos e preocupações percebo que o grupo está parado a alguma distância. Parece um pouco ridículo, agora que visualizo a cena de novo: eu caído de gatas, eles a 50 metros, montados nos cavalos, a chamar por mim. Mas foi tudo muito rápido.

O miúdo chegou ao pé de mim e disse qualquer coisa, olhei para ele e vi desenhar-se no seu rosto uma expressão de puro terror. O que é que eu tenho na cara - não sinto nada, e não me atrevo a mexer. O que é que eu tenho na cara. Há que aproveitar agora, ainda "a frio", para fazer o que tenho a fazer. Tenho de encontrar os meus óculos. Onde é que estão os meus óculos?!

Ele insiste: temos de ir embora. Eu respondo: não saio sem os óculos. Oiço o meu nome outra vez, mas volto a repetir em voz alta:

"Não saio daqui enquanto não tiver os meus óculos."

A sueca, que nunca tinha estado em cima de um cavalo na vida, desmontou com a delicadeza de uma amazona e veio a correr na minha direcção. Ouvi alguém gritar-lhe "não deixes o cavalo sozinho", mas ela respondeu qualquer coisa do género "estou-me nas tintas".

"Jorge, estás em choque, é normal, mas temos de ir para o acampamento tratar da tua cara".

Eu olho para ela com o ar mais sério que é possível, tendo em conta que devo ter a fronha num estado bonito e digo-lhe, muito calmamente:

"Eu tenho 7 dioptrias em cada olho. Sem os óculos, não vejo nada. Se sairmos daqui agora, nunca mais os encontro. Não saio daqui sem os meus óculos."

O miúdo tinha desaparecido, entretanto, a cavalgar pela estepe fora a toda a velocidade, o pôr-do-sol ao fundo e tudo - não que eu tivesse reparado, mas alguns minutos depois, quase ao mesmo tempo que ouvi a Linda a gritar "encontrei-os!", vi-o a regressar.

Trazia: um balde azul.

Entretanto, os outros continuavam montados nos seus cavalos.

Os óculos - como é que eu os descrevo sem começar a chorar? ;) Eram uma dificilmente identificável amálgama de arames contorcidos. Curiosamente, a lente que eu tinha substituido em Lisboa, nem há um mês, estava intacta. Era a única peça intacta.

No balde havia água - gelada. Que bem que me soube mergulhar as mãos lá dentro, e a conselho do miúdo e da sueca, levá-las à cara.

"Diz-me o que é que eu tenho."

Ela explicou-me que tinha um corte feio entre as sombrancelhas, a testa arranhada, a boca cortada.

"O corte é que é feio, de resto não te preocupes. Parecia pior porque tinhas a cara cheia de terra, e sangue por todo o lado - mas agora que passaste por água, está melhor."

De cara gelada, regressei para perto do grupo. A holandesa também já tinha desmontado, e não se atrevia a subir para um cavalo outra vez até ao fim da sua vida. Tinha sido contra ela que o meu cavalo chocara, mas teve a sorte de não cair. O Fartarotti tinha fugido, ninguém sabe para onde, provavelmente para casa. Não era a prioridade, agora. O miúdo perguntou-se se eu estava capaz de montar outra vez, disse-lhe que sim e lá fui para o cavalo dele - ele foi no da holandesa. E a holandesa: a pé.

A primeira vez que me "espetei" de mota, tinha uns 16-17 anos, estava a voltar do Cabo da Roca para casa - que era na Praia das Maçãs. Ou seja: não tive alternativa senão fazer o resto do caminho na mesma mota em que caíra. Mais tarde, ao saber do acidente, o meu pai disse-me que tinha feito bem, porque assim "não ganhava medo".

Foi a mesma coisa com o cavalo. Não podia ganhar medo. Montei-me e fui por mim próprio até casa. Sem heroísmos nem falsas modéstias - foi assim, e assim só podia ser.

O ger parecia um hospital de campanha. Toda a gente tinha trazido os seus kits de sobrevivência - e pela primeira vez me apercebi da sorte que tinha em haver duas enfermeiras no grupo. Enquanto eles preparavam o teatro de operações, eu aproveitei para tirar umas fotos. Tinha de ser. Tinha de registar aquele momento.
















Porque, por muito mau que fosse cair de um cavalo, uma coisa era certa: tive sorte. Tive sorte porque não bati com a cabeça "a sério". Tive sorte porque podia ter feito alguma coisa à coluna. Isto-e-aquilo... e por favor não me venham com a história do "é mesmo português", porque holandeses, suecos, espanhóis, coreanos e mais tarde austríacos, chilenos, alemães, ingleses, australianos, chineses, uruguaios, noruegueses, polacos, japoneses, suíços... todos disseram o mesmo:

"Dentro do azar, muita sorte tiveste tu."

Estava tudo pronto, dentro do ger. Sentei-me na cama e entreguei-me ao cuidado das minhas enfermeiras suecas. Só me apetecia rir, de cada vez que pensava nisso... duas enfermeiras suecas! É uma espécie de fantasia, tantos homens sonham com este momento... ok, não propriamente neste cenário. Mas.

Duas enfermeiras suecas. :)

Feito o curativo, recomendaram-me isto e proibiram-me aquilo. Tens tonturas? Vómitos? Vertigens? Dores nas costelas? Sim - onde? Deixa-me ver, estás com sorte, eu sou especialista em ossos.

Alguém decidiu que era hora de bebermos o vodka que sobrara da noite anterior.

"Nem pensar! Se ele tiver algum tipo de hemorragia interna na cabeça, pode morrer."

Fiquei-me pela água.

À partida, nada de grave nas costelas. Agora que o corpo começava a aquecer, doía-me tudo. O lado esquerdo: perna e braço, e principalmente as costelas, doíam-me imenso. Mas nada de grave, segundo a enfermeira.

"Se sentires pontadas, se começar a aparecer uma nódoa negra... avisas-me logo."

Fiquei a descansar o resto do dia. Frustrado com os acontecimentos, na expectativa de uma recuperação rápida. Quando nos deitámos, os holandeses ficaram incumbidos de me acordar de hora a hora, para ver se estava tudo bem. Para ver se estava vivo.

"As primeiras 24 horas são vitais, temos de ter atenção a todos os sintomas."

Claro que não precisaram de me acordar de hora a hora - muito pouco dormi, nessa noite. Entre dores e a imagem recorrente do momento da queda, o corpo e o espírito não me deixaram em paz até de manhã. Foi, posso garantir, uma das piores noites da minha vida.

 

4 comentários:

LV disse...

Coitadinho do meu filho. Aainda bem que só me contaste uns dias depois, quando já tinhas a certeza, que embora ainda dorido, estava tudo bem.
Só penso na tua imagem à procura dos óculos ... de facto são o teu melhor amigo nestas andanças. ainda bem que levavas os óculos velhinhos contigo.
Agora quando vieres lá terás de gastar mais uns valentes euritos ....
Muita sorte no meio do azar .... é o teu anjo da guarda sempre alerta !!!!

TC disse...

E depois desta só confirmo o meu unico medo assumido na vida...não gosto mesmo de andar a cavalo!

Clara Amorim disse...

Afinal, foi mesmo grave...
É caso para perguntar - O que mais irá acontecer...???

João Almeida disse...

Mesmo usando lentes de contacto mais vezes o meu reflexo é sempre o mesmo: onde estão os meus óculos?!!