01/07/2014

A VIDA NO HUTONG

Volto para a "minha" guesthouse no hutong*. Nestas ruas apertadas e coloridas, Pequim é a Pequim que eu gosto mais, é um corre-corre de sensações e imagens, é o contraste às ruas largas sem identidade, às grandes construções que dão torcicolo só de olhar. Aqui tudo está perto, tudo passa a razar, desvia-e-deixa-passar, o cheiro da fruta fresca e das sopas quentes na panela.

A vida no hutong acontece quer tu estejas ou não, quer venhas de passagem ou para ficar, devagar a tentar absorver tudo ou a correr com mil coisas na cabeça.

Saio do metro e avanço pelo passeio que ladeia a avenida principal, lojas e árvores e paragens de autocarro, semáforos e passagens de peões. E quando entro no hutong, por uma rua apertada onde praticamente só circulam pessoas e mercadoria, é como se saísse da China e entrasse em Pequim. Parece estranho mas é mesmo assim.

Tento absorver tudo para depois descrever, tiro notas mentais deste e daquele pormenor, mas como é que dou uma ordem a isto tudo, uma lógica a esta paisagem de caracteres chineses e de comida que não sei traduzir, à música pop que acompanha um teledisco na televisão do cabeleireiro, as toalhas penduradas a secar à porta, os olhares curiosos quando passo.

Ni hao, digo e recebo sorrisos de volta.

T-shirts levantadas deixando a barriga ao léu. É do calor.

Cruzo-me com uma senhora a empurrar uma bicicleta, com um caniche branco sentado no cesto à frente do volante. Um velho excêntrico de rabo-de-cavalo e leque enorme aberto, é o Lagerfeld cá do bairro. Dois adolescentes vestidos de preto e com o cabelo às cores, a passar de skate entre a confusão de bancas de fruta e de fritos, de roupa em segunda mão espalhada no chão, de artigos para a cozinha, de legumes para a sopa e DVDs pirateados.

Oiço um electrónico buzinar, quase tímido mas insistente, olho para trás e está uma mota a tentar passar. Desvio-me. Que silêncio bom, este das motas eléctricas, ao fundo o som típico de um filme de artes marciais.

Passo por um grupo de homens a jogar cartas, nem dão por mim. Algumas velhotas sentadas num velho sofá cheio de buracos. Olham-me sem dizer nada, mas vejo dentes quando lhes sorrio. Oiço crianças a brincar e a rir. Concentram-se pessoas à volta de um carrinha cheia de melancias. Ao lado um miúdo sentado no chão faz desenhos com giz no alcatrão. Cheira-me a erva doce. A cebolinho. A aniz. Ao cigarro do gajo que se cruza comigo, agora.

Um velhote a cantarolar, enquanto caminha. Uma mulher a discutir com outra, enquanto lava o vidro da montra da loja. Duas miúdas a jogar badminton, vestidas de cor-de-rosa e Minnies e Kittys. Uma mulher de saltos muito altos e saia muito curta e rosto muito pintado, um grupo de estudantes fardados a comprar qualquer coisa numa loja, não sei se são doces ou cromos para a caderneta, ou-lá-o-que-é.

Compro mangostão no sítio do costume, troco cumprimentos e sorrisos, passo ainda numa pastelaria e levo uma fatia de pão-de-ló. E assim se passa pela vida, nas ruas do hutong.

* (hutong é o nome que se dá aos bairros tradicionais de Pequim, que são como pequenas aldeias labirínticas dentro dos quarteirões enormes formados pelas avenidas grandes)

2 comentários:

Lyra disse...

:-)

Clara Amorim disse...

Muito bom! Até que consegues transportar-nos para lá...!