28/05/2015

TERRORISTAS... NÓS?! (2)

"Vocês têm de compreender que estou só a fazer o meu trabalho."

Ok. Temos o Polícia Bom. Felizmente é o que fala inglês. Mas o outro não desiste. O Polícia Mau já nos obrigou a apagar fotografias da câmara (felizmente não tínhamos nada das fábricas, mas mesmo assim tivemos de apagar duas ou três), copiou os dados do passaporte e do visto indiano. Já nos tiraram fotografias. Estamos aqui há vinte minutos e não aconteceu nada. Não nos deixam ir embora.

PARTE 2:
QUEM ESPERA...

"Eu entendo, mas está um calor infernal e nós estamos na estrada desde as seis da manhã. Estamos cansados, sujos, com fome e com sede. Só queremos chegar ao nosso hotel e tomar um duche."

Oferecem-nos cadeiras para nos sentarmos à sombra, copos de água. A senhora agente até nos ofereceu fruta-caju. Não nos podemos queixar de estar a ser maltratados. Mas este é o último lugar onde nos apetece passar a tarde.

"E onde é que está o superior que chamaram?"

Tentamos manter a calma, stressar não vai ajudar nada. Mas de vez em quando convém mostrar alguma firmeza.

"Cinco minutos."

Olhamos para o relógio. Passou meia hora.

"Cinco minutos? Disseste cinco minutos há quinze."

"Está a caminho."

Entretanto explicamos a situação dos outros que nos chamaram, e que nós pensámos serem só mais uns a querer chatear. Pedimos ao polícia para lhes ligar, para confirmar a história. E pensando bem no assunto... porque não vieram atrás de nós, se este lugar é de segurança tão apertada? Isto é uma grave falha da segurança. Nós não passamos de vítimas de uma falha de segurança!

Calma, Jorge. Não interessa nada ir por aí. Temos de nos manter serenos e resolver isto da melhor forma. O calor aperta, estão quarenta e cinco graus e isso não ajuda a manter o raciocínio "limpo". Calma.

Passou uma hora.

Passaram mais dez minutos.

Já explicámos que temos uns trinta quilómetros pela frente, que passa das quatro da tarde e daqui a uma hora começa a escurecer. Somos apenas turistas que foram parar ao lugar errado. Só queremos ir para o hotel. Ainda ponho a hipótese de dizer que tenho as luzes avariadas, mas a) ainda me pedem para confirmar e depois é pior, constatar que funcionam; e b) ainda invoco um mau karma qualquer e depois as luzes avariam mesmo. Não disse nada.

Uma hora e um quarto, uma hora e vinte. Foi o tempo que ficámos neste posto de controlo. Até que apareceu um jipe e uma mota. Parecia um filme. A porta abriu-se à nossa frente e saiu um cinquentão de barriga grande, todo vestido de branco, óculos escuros e bigode. À Bollywood. Ou melhor: à Tollywood, que é o Bollywood do sul da Índia.

Estende-nos a mão e cumprimentamo-lo.

"Então contem lá o que vem a ser isto."

Como é que se explica a um gajo destes o facto de estarmos a viajar pela Índia... por uma estrada de terra batida, por atalhos que não fazem sentido (pelo menos aos olhos dos indianos).

"Mas porque não foram pela autoestrada? Não percebo o que estão a fazer aqui, sinceramente."

"Não gostamos dos camiões. Fugimos muitas vezes às estradas grandes para irmos com mais calma, mais relaxados, e às vezes o GPS manda-nos por caminhos... hmmm... mais alternativos."

Voltamos a contar a história dos gajos que nos chamaram, voluntariamo-nos para tirar as mochilas das motas e abrir tudo à frente deles. Somos só uns turistas, aparentemente um bocado tontos, mas é só isso que somos. Adventurists, é a palavra que os ouvimos dizer várias vezes, entre outras que não fazemos ideia do que signifcam. Sim, é isso mesmo: somos adventurists.

"Sigam-me, se faz favor", diz sem expressão no final de cinco minutos de conversa.

"Mas vamos onde?", pergunto com calma, mas firme.

"O gabinete do comissário da polícia fica mais à frente. Precisamos de confirmar os vossos vistos."

Ok: por um lado, temos aqui um desenvolvimento. Implica que vamos passar para o lado de fora da zona do "crime". Mas fugir não é uma opção. Temos de resolver isto Bem Resolvido. Por outro lado, isto de cinfirmar vistos, etc. Temos tudo em ordem, mas não convinha nada termos os meios oficiais a registar que somos suspeitos de espionagem industrial. Ou terrorismo.

Enfim: não temos outra opção. Vamos atrás deles. Mas não sem alguma emoção extra pelo caminho. A meio de uma recta, rodeados por pântanos e lixo e alguns arbustos mortos, a vespa do Luís foi abaixo. Sem explicação.

"Se calhar entrou na reserva!", grito do sítio onde parei. Cem metros à frente do Luís, cem metros atrás do jipe e da mota, que começa a dar meia volta.

"O que se passa?", pergunta-me o polícia.

"Não sei... se calhar é a gasolina."

A mota pega e arrancamos novamente. Mas apenas por duzentos metros. Volta a parar. Os polícias estão visivelmente nervosos. O que não é de estranhar. Isto tem todo o ar de sermos nós a ganhar tempo. Alguma coisa não está bem aqui, devem pensar eles. E nós também já ansiosos, sem saber o que fazer.

"Não é a gasolina, Jorge!", diz-me o Luís.

"Mas experimenta... eu também estou quase a entrar na reserva."

E o polícia ao meu lado:

"Ele que deixe a mota aí. Vem contigo, ou vem a três connosco. Vamos embora!"

E de repente a mota pegou outra vez. Era mesmo da gasolina. Que susto. O Luís a rir e eu a rir, e os polícias com cara de desconfiados. Avançámos então para o centro deste mundo triste. Passámos por nova cancela, desta vez sem problema porque vínhamos escoltados, e se antes víamos muitos camiões, agora era um exagero. Que corropio. A estrada toda suja de pó preto e lama preta, nos separadores praticamente já nem se distinguem as riscas amarelas. Fábricas por todo o lado, gente suja com olhar triste. Nós somos o único apontamento de cor neste lugar. Nós - e a casinha onde fomos ter. Uma vivenda verde com um pequeno parque de estacionamento à frente, onde parámos as motas sempre sob o olhar frio e atento de dois polícias. Qualquer movimento, qualquer coisa que de repente caía ao chão. Que nervos.

O jipe entretanto desaparecera.

"Ainda acabamos a jantar com eles, vais ver", disse-me o Luís antes de sermos escoltados para dentro de casa.

Eu percebi o que ele queria dizer. Além de toda a rigidez com a segurança, havia aqui o omnipresente factor indiano da "curiosidade". Algum deslumbre, diria. Tínhamos os olhos todos em nós, na forma como reagíamos, naquilo que representamos de ameaça mas também de sonho, de algo extraordinário. Os indianos ficam sempre muito surpreendidos com a nossa viagem. Por ser em vespas em vez de motões; por estarmos a fazer uma rota completamente fora do circuito clássico; porque vamos um bocado sem destino; e porque optamos muitas vezes pelas estradas pequenas, em vez de ir directos pelas "autoestradas".

Abre-se a porta e recebemos no rosto a deliciosa sensação de um ar condicionado. Já valeu a pena vir aqui.

"Sentem-se", diz o quarentão por detrás da secretária. Tem um tique que o faz piscar o olho direito cada vez que começa uma frase nova.

"Querem um chai?"

OK: pode ser que isto afinal seja mais soft do que estávamos à espera.

Ou não.

Preciso de mais uma pausa... este calor entranha-se até entre os dedos. Apesar de estar neste momento num quarto com o ar condicionado. Enfim: já continuo com o relato.

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