22/06/2015

MAIS UM DIA NA ESTRADA (À CHUVA)

Passaram a correr, os dias na aldeia do meu amigo Kousik. Acabei por nem publicar muita coisa aqui, pois confesso que os dias foram vividos quase sempre num dolce fare niente que me soube às mil maravilhas. Era mesmo o que estava a precisar. Longas conversas com os amigos, refeições demoradas em família, sestas a meio da tarde e passeios de mota pelas aldeias à volta.

E de repente passou quase uma semana.

Ontem saí de manhã com o coração apertado, a família toda à porta de casa a dizer adeus. Acabei por nem avançar muito no mapa, fiz ao todo pouco mais de sessenta quilómetros e parei numa terra cujo nome não consigo pronunciar, porque começou a chover e não tive coragem de continuar.

Contudo, hoje quando acordei às seis da manhã tinha as energias todas recarregadas. Chovesse o que chovesse, eu ia andar de mota.

Tive sorte de não apanhar chuva durante a manhã. As nuvens bem que prometiam, e o verde-impossível dos campos à volta era a prova de que tem chovido bastante, ultimamente. Mas eu vesti o meu fato de Martin Luther King, enfeitei-o com uns acessórios à Dumbledore do Harry Potter, e enquanto atravessava aldeias com casas de colmo e telhados de palha, proferi um discurso em inglês para uma multidão imaginária, como que a convencer as nuvens a não descarregar enquanto eu não parasse. Doido? Talvez. Um pouco. Tantas horas em cima de uma mota nas estradas indianas... pode dar para muita coisa. ;)

"You shall not rain, clouds! Leave this road dry and safe! Leave this traveller dry and safe! Leave us and go drop your water somewhere else! Only after this traveller stops, and only then, rain shall fall. But never before that!"

Ok.

Mas resultou. A verdade é que resultou. Coincidência ou acaso, ou resultado do meu incrível poder de persuasão sobre fenómenos naturais: não choveu. Só a meio da manhã, quando parei para tomar um chai e duas samosas deliciosas, à beira da estrada, é que cairam os primeiros pingos. E eis que, finalmente, começou a chover.

Uns locals meteram conversa e acabei na loja de um deles a falar de Ronaldo e do Vasco da Gama, do Ramadão e de literatura indiana... e do Anil Kappoor, o actor que faz de apresentador no Slumdog Millionare, e que os indianos insistem, há anos, que é igual a mim. Enfim.

Mas como estava a dizer: passou-se uma hora de conversa - e quando a chuva virou singelo aguaceiro, voltei à estrada. Só que a partir daqui os meus discursos deixaram de fazer efeito. A chuva, uma vez libertada, não me deu mais ouvidos. E por isso o resto do caminho fiz numa espécie de pára-arranca mútuo, eu e a chuva. Quanto um parava o outro arrancava; quando um arrancava o outro parava.



Devo ter feito umas seis paragens, ao todo. Desde lugares isolados em que pude sentar-me e apreciar o universo à minha volta sem distúrbios, a outros mais "animados" onde respondi a duzentas e treze perguntas, tirei selfies, troquei números de whatsapp e contactos do facebook.

Ainda deu para assistir a um atropelamento, mesmo à minha frente: uma rapariga de treze ou catorze anos vestida com a farda da escola atravessou a estrada a correr... e uma mota não consegui desviar-se ou travar. Mota para um lado, miúda para o outro - a primeira, sabe-se lá como, conseguiu aguentar-se; mas a segunda teve direito a piruetas e acrobacias de circo, e aterrou no chão de uma forma que eu pensei ser a última. Mas levantou-se e a cambalear foi embora, para espanto de toda a gente em redor.

A mim calhou-me uma cobra. No que a atropelamentos diz respeito, note-se. Ia devagar numa recta a tirar notas no gravador do telefone, quando uma cobra pequena, de quarenta centímetros no máximo, atravessou-se à minha frente, ziguezagueando. Que susto. Mas confesso que, entre buracos na estrada, telefone na mão, autocarros com gente em cima do tejadilho, outras motas em sentido contrário e choviscos só para irritar... nem olhei para trás. Espero que tenha sobrevivido, tal como a rapariga, com piruetas e acrobacias de circo.

Cheguei ao meu destino a meio da tarde. Ensopado e cansado, mas com um sorriso de orelha a orelha. Foi um passeio bom, o de hoje.


1 comentário:

Clara Amorim disse...

Os nossos passeios também estão a ser maravilhosos!!! :)